sexta-feira, 27 de junho de 2014

Enquanto Agonizo

Faulkner, William. Enquanto agonizo. Editora Expressão e Cultura; Rio de Janeiro / RJ; 1973; 212 páginas.

Breve relato do autor:

William Faulkner é considerado um dos maiores escritores estadunidenses do século XX. Recebeu o Nobel de Literatura de 1949. Posteriormente, ganhou o National Book Awards em 1951, por Collected Stories e em 1955, pelo romance Uma Fábula. Foi vencedor de dois prêmios Pulitzer, o primeiro em 1955 por Uma Fábula e o segundo em 1962 por Os Desgarrados.

Dados da obra:

Enquanto Agonizo é um romance conhecido pela técnica de narrativa de fluxo de consciência, com vários narradores e diferentes comprimentos de capítulo. O livro é narrado por 15 personagens diferentes, e distribuído em 59 capítulos. Relata a história da morte de Addie Bundren e as questões e motivações de sua família — nobres ou egoístas — para homenagear o seu desejo de ser enterrada na cidade de Jefferson.

Passagens:

“Onde está Jewel?”, pergunta Pai. Quando eu era menino, aprendi que a água fica mais saborosa quando recolhida, durante algum tempo, numa tina de cedro. Fresca, com um leve gosto semelhante ao cálido vento de julho tirando aroma das folhas de cedro. Tem de ficar guardada pelo menos seis horas e ser bebida em cabaça. Nunca se deve beber água em vasilhas metálicas.

Para fazer a gente, são necessárias duas pessoas, para morrer, basta uma. Assim o mundo marca para o fim.

Lembro-me que, quando jovem, eu julgava a morte um fenômeno do corpo; agora, sei que não passa de função do espírito e também do espírito dos que sofrem a perda. Os niilistas dizem que a morte é o fim; os fundamentalistas, que é o princípio; quando, na realidade, não é mais que um inquilino ou uma família que sai de uma casa alugada ou de uma cidade.

Cora está certa quando diz que ele precisa é de uma mulher para fortalecer-se. E quando penso nisso, concluo que se o casamento é a única salvação de um homem, então ele está perdido. Mas reconheço que Cora tem razão quando diz que a razão de Deus haver criado as mulheres está em que o homem não conhece seu próprio bem quando este aparece.

Em quarto estranho é preciso criar em nós mesmos o vazio, para poder dormir. E antes de se ficar vazio para o sono, que é que somos, afinal? E quando ficamos vazios para o sono, já não somos nada. E quando estamos cheios de sono, nunca somos nada. Não sei o que sou. Não sei se sou ou não sou...

Parecia que, enquanto o embuste corria tranquilo e monótono, todos nós o aceitávamos, favorecendo-o com a nossa inconsciência e talvez com a nossa covardia, já que todas as pessoas são covardes e preferem, naturalmente, qualquer gênero de traição, pois a traição tem o seu lado cômodo.

... E quando soube que ia ter Cash, percebi que viver era terrível e que aquilo era a resposta. Então soube que palavras não têm importância, que palavras nunca exprimem o que tentam dizer.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Meus desacontecimentos

Brum, Eliane. Meus desacontecimentos; Leya Editora; São Paulo / SP; 2014; 144 páginas.

Breve relato do autor:

Eliane Brum é uma jornalista, escritora e documentarista brasileira. Formou-se pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) em 1988 e ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem.

Dados da obra:

Neste livro, Eliane Brum revela suas mais profundas memórias de infância De quantos nascimentos e mortes se constitui uma vida? De quantos partos uma pessoa precisa para nascer? Com quantas palavras se faz um corpo? A menina que flertava com a morte conta como foi salva pela palavra escrita. Em cada página, personagens fantasticamente reais incorporam-se: a irmã morta, que era a mais viva entre todos; a avó, comedida em tudo, menos na imaginação; a família que precisou de uma perna fantasma para andar no novo mundo; as tias que viravam flores para não murchar.

Passagens:

Desde o início o mundo doeu em mim. Dentro, mas também fora. Alguns creem que as memórias da primeira infância ou são boas ou não existem, temerosos de que te o mito da infância feliz lhes escape. São os que preferem não lembrar. Eu lembro muito, sempre lembrei. E ainda hoje há noites, muitas noites, em que acordo com o coração descompassado. Sempre vou temer o retorno da escuridão, que para mim é o mundo sem palavras.

... Minha mãe procurava algo que combinasse com Cristina, porque Cristina era uma tia muito querida que cuidou do meu pai quando ele se descobriu órfão. Assim que encontrou uma combinação que lhe pareceu harmoniosa, uma nova novela de rádio foi ao ar e a heroína era justamente Isabel Cristina. Minha mãe desistiu do nome, temerosa de que nascessem Isabéis Cristinas demais no mundo, o que demonstrava uma tentativa amorosa de me destacar na multidão. Mas eu não entendi dessa maneira. Para mim, minha mãe me negara um nome de heroína. Das mães, como se sabe, é preciso arrancar-se. Um parto só não basta, poderia dizer Laura, a personagem de meu primeiro romance.

... Desde pequena, sou capaz de permanecer horas só escutando, sem a necessidade de falar de mim mesma. Pelas fábulas de família minha avó resgatava um pretérito que nunca teve. Se não era possível alcançar um amanhecer mais próximo de seus suspiros, ela compensava alinhavando seu antes com linhas bem coloridas, às vezes extravagantes. Minha avó sabia que, para algumas vidas, é mais fácil mudar o passado que o futuro.

Herdei essa lucidez ou essa loucura, para mim tanto faz, e proseio com a minha avó nas tardes em que o sol entra pela janela e penso vê-la já desencurvada de suas dores terrenas. Quando comprei um apartamento em São Paulo, carreguei o maior número de móveis e objetos dela que consegui resgatar para que ela pudesse se sentir em casa. Entre eles sua cristaleira, onde acomodo as recordações de viagem, assim como os presentes das travessias de outros. É minha tentativa de fazer com que a alma da minha avó, que tanto ansiou por aventuras romanescas, possa dar a volta ao mundo.

Da infância somos todos sobreviventes.

É o contrário do que parece ser. Antes de nos assombrar, os monstros eram humanos. Eles nos assustam pela lembrança de sua humanidade. A monstruosidade é o que nos ajuda a suportá-los.

Desde pequena eu tenho muita raiva – e quase nenhuma resignação. A reportagem me deu a chance de causar incêndios sem fogo e espernear contra as injustiças do mundo sem ir para a cadeia. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar.
  
... Lembro-me ali de quem escolhi ser. E Luzia sussurra: ser é perder-se.

Entender rápido demais pode ser um perigo, já que todo pode significar – ou não significar coisa alguma. O passado só existe a partir de um narrador no presente que é tanto um decifrador quanto um criador de sentidos.

O lugar da realidade se inverteu. A paisagem dos livros era a real. A da vida concreta era sonho. Eu me movia por ela e fazia o que esperavam que fizesse, mas eu não estava ali. Estava lá. Era jovem, era velha, heroína, aventureira, princesa, fada, bicho, planta, sereia, monstro, deus. Estava nas terras altas da Escócia, no centro da Terra, em bosques povoados por bruxas e duendes, no sítio do Pica-Pau Amarelo, em Valhala. Eu podia escolher quem ser e onde estar. Em algumas semanas, parte das paredes da minha nova casa velha e de Ijuí para o mundo. Em seguida, também para outros planetas e outras dimensões. Me entreguei à experiência. Com o coração e também com as tripas, como faria tudo na vida.

Ser contadora de histórias reais e acolher a vida para transformá-la em narrativa da vida. É só como história contada que podemos existir. Por isso escolhi buscar os invisíveis, os sem-voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, àqueles à margem da narrativa. Em cada um deles resgatava a mim mesma – me salvava da morte simbólica de uma vida não escrita.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O amante

Duras, Marguerite. O amante. O Globo – Folha de S. Paulo. São Paulo / SP; 2003; 95 páginas.

Breve relato do autor:

Marguerite Duras, de origem vietnamita, é uma das escritoras mais fascinantes da literatura contemporânea francesa e internacional. Quase todas as suas obras são autobiográficas, transpondo para a ficção a experiência pessoal, triste e, não raras vezes, trágica, mas que atingem o esplendor artístico, através de um estilo seguro e inconfundível.

Dados da obra:

Considerado o livro mais autobiográfico da escritora, O amante foi escrito em 1984. Recebeu o Prêmio Goncourt, o mais importante da literatura francesa e se consagrou como sua obra mais célebre. O romance narra um episódio da adolescência de Duras: sua iniciação sexual, aos 15 anos e meio, com um chinês rico de Saigon. A vida da família contrapõe amor e ódio, miséria material e riqueza afetiva. A presença da mãe, sua desgraça financeira e moral, do irmão mais velho, drogado, cruel e venal, e do irmão mais novo, frágil e oprimido, constituem uma existência predominantemente triste.

Passagens:

Certo dia, já na minha velhice, um homem se aproximou de mim no saguão de um lugar público. Apresentou-se e disse: “Eu a conheço há muito, muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude, que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje, devastado.”

... Como explicar essa compra? Nenhuma mulher, nenhuma moça usava chapéu de feltro masculino, na colônia, naquela época. Nem mesmo as nativas. Eis o que deve ter acontecido: experimentei o chapéu de feltro, por brincadeira apenas, olhei-me no espelho da loja e vi: sob o chapéu de homem, a magreza ingrata do corpo, aquele defeito da infância, parecia outra coisa. Deixou de ser um elemento brutal, fatal, da natureza. Transformou-se em algo oposto, uma escolha que contrariava a outra, uma escolha intencional. Subitamente é algo desejado. Subitamente vejo-me como outra, como outra será vista, lá fora, à disposição de todos, à disposição de todos os olhares, lançada na circulação das cidades, das estradas, do desejo. Seguro o chapéu, não me separo mais dele, é meu, aquele chapéu que me possui inteira, não o largo mais.

Nunca mais eu viajaria num ônibus de nativos. Teria agora uma limusine para levar-me ao liceu e trazer-me de volta ao pensionato. Jantaria nos lugares mais elegantes da cidade. E para sempre teria saudades de tudo o que fiz então, de tudo o que abandonei, de tudo o que aceitei, o bom e o mau, o ônibus, o motorista que me fazia rir, as velhas mascadoras de bétel dos lugares mais atrasados, as crianças em cima do porta-bagagem, a família de Sadec, o horror da família de Sadec, seu silêncio genial.

A pele é de uma doçura suntuosa. O corpo. O corpo é magro, sem força, sem músculos, podia ser o corpo de um doente, de um convalescente, ele é imberbe, sua única virilidade é a do sexo, é muito fraco, parece estar à mercê de um insulto, parece sofrer. Ela não olha para o rosto. Não olha. Só o toca. Toca a doçura do sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a novidade desconhecida. Ele geme, chora. Dormindo por um amor abominável.
E chorando ela realiza o ato. A princípio, a dor. E depois a dor se transforma, é arrancada lentamente, transportada para o prazer, abraçada ao prazer. O mar, sem forma, simplesmente incomparável.


Na rua, a multidão movimenta-se em todas as direções, lenta ou rápida, abrindo caminho, sarnenta como os cães abandonados, cega como os mendigos, uma multidão da China, vejo-a ainda nas imagens da prosperidade de hoje, no modo como caminham todos juntos sem jamais demonstrar impaciência, aquele modo de estar só no meio da multidão, sem alegria, pode-se dizer, sem tristeza, sem curiosidade, caminhando sem parecer ir a lugar algum, sem intenção de ir, mas apenas avançando, mudando de lugar, isolados e no meio do povo, jamais sozinhos de verdade, sempre sozinhos no meio da multidão.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Nenhum Olhar

Peixoto, José Luis. Nenhum Olhar. Agir Editora. Rio de Janeiro / RJ; 2005; 192 páginas.

Breve relato do autor:

Escritor português, José Luis Peixoto estudou línguas e literaturas modernas (inglês e alemão) na Universidade Nova de Lisboa. Em 2001, recebeu o Prêmio José Saramago com o romance Nenhum olhar. Seus livros foram traduzidos para cerca de 20 idiomas.

Dados da obra:

Publicado em 2000, Nenhum Olhar é a mais traduzida das suas novelas. Recebeu o Premio José Saramago em 2001 e descreve um universo em que a paisagem rural alentejana se mistura com elementos do fantástico. Na novela quase não há diálogos, o autor usa a técnica do corrente da consciência.

Passagens:

... Essa voz abafada falava solene como se estivesse a ler uma epopeia de um livro, disse: talvez os homens existam e sejam, e talvez para isso não haja qualquer explicação; talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique.

Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima dos outros. Não a dor, não as pernas trôpegas de nódoas negras, não as costelas partidas a colar entre o sangue pisado, não a cabeça a rachar-se em tentáculos como raios, não a pele das paixões acabadas a partir de rasgões fundos na carne com vergastadas de uma importância absoluta; mas o sofrimento, permanente e constante, como todos os ossos expostos a furar os músculos e a pele. Dói-me o corpo e é sem o sentir que sofro...

Foi num sábado de julho. José vestiu o único fato que tinha, um fato preto que pertencera ao doutor Mateus e que lhe ficava largo nas mangas e enfolado na cintura, um fato preto que usou no funeral da mãe e no casamento da irmã. A sua mulher levou um vestido branco, que tinha pertencido à senhora e que ela tinha recuperado de um esfregão. Foram casados pelo demônio, pois era ele que casava as pessoas na vila. Os padrinhos foram o Moisés e o Elias, e as madrinhas foram a cozinheira e a louca da rua da palha, porque ia a passar à porta da capela e a puxaram para dentro. Os convidados eram o velho Gabriel, o pai de José, a irmã, o cunhado ferrador e o sobrinho de sete meses.

Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros. Ainda que o peso do meu peito seja custoso, qual é o peso de um abismo?, ainda que me sinta um cego a crescer sem olhos para um precipício, tenho de me levantar desta cama. Tenho de levantar estes braços que não são meus, tenho de levantar estas pernas que não são minhas, mas de um rochedo, e ir tratar das ovelhas. A minha cadela. O campo. O sobreiro grande. Que sombra estará agora debaixo do sobreiro grande? Ainda que caminha pela noite ao meio da tarde, ainda que no pico do sol seja o mais negro da noite e dentro da noite seja noite também, por tudo ser noite aos meus olhos, tenho de me levantar desta cama. Mesmo que seja para sofrer sofrer, tenho de ir de encontro àquilo que serei, por ter sido isto e não poder fugir, não poder fugir de me tornar alguma coisa.

... E, sem falar, pois as palavras são a pior forma de dizer, olhei o pai do José, sabendo que ele não me podia escutar, e disse o teu filho está muito mal, o teu filho sofre. E não disse mais. Não que se esgotasse o que havia para dizer, mas porque não há forma de dizê-lo, nem mesmo sem palavras. Não já forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer.

Os homens são uma parte pequena do mundo, e eu não compreendo os homens. Sei o que fazem e as razões imediatas do que fazem, mas saber isso é saber o que está à vista, é não saber nada. Penso: talvez os homens existam e sejam, e talvez para isso não haja qualquer explicação; talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique...

... Hoje, deixar-te-ei, sabendo que sempre tive amor por sempre estares comigo. E não tenho mais vergonha dessa palavra que nunca dissemos: amor: essa palavra: amor: que nunca chegamos a dizer e que hoje preciso de dizer. Sincero, verdadeiro, irmão. Irei sentir a tua falta. Sem o poder explicar a ninguém por não existir ninguém ao meu lado, irei sentir a tua falta. E, por mais negra que seja a planície por onde vaguearei a eternidade, será sempre a recordação dolorosa de um sol-pôr, será sempre a mago de só te poder lembrar.

... Este sol é a canção cantada pela nossa mãe para nos adormecer, e que nos desperta na escuridão, insuportável de já não termos mãe e de ficarmos nesta solidão tórrida e sem esperança. Para quem sabe conhecer, este verão é negro. Para quem sabe conhecer, este calor é soturno.

... Penso: talvez a dor exista para nos avisar de um sofrimento ainda maior.

... A noite é como a conheço: negra e profunda, a isolar-me dentro de si e a dizer-me que também eu sou a noite que a noite é. Não ponho as mãos nos bolsos, deixo-as e deixo os braços. Levanto a cabeça e olho a noite no céu, não as estrelas, mas o espaço que as separar.

... Mãe, como gostava de ter-te sentido dentro dos meus braços, como gostava de ter estado dentro dês teus. Mãe, para ti a morte não é cruel, pois há muito morreste para todos, pois há muito escolhestes existir apenas para me lembrares o amor é, agora que nada em mim tem regresso e sou definitivamente uma vertigem, acabou o teu caminho e podes descansar. Adeus, mãe. Obrigada, silêncio.

... Tenho pressa. Tudo me espera onde não existo. Nada existe onde não estou e não estou em nenhum lado. Tudo me espera para me destruir mais ainda. Tenho pressa de resolver-me. Tenho pressa de desaparecer. Tenho pressa.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Esaú e Jacó

Assis, Machado de. Esaú e Jacó. Editora Ática. São Paulo / SP; 1977; 155 páginas.

Breve relato do autor:

Escritor brasileiro, amplamente considerado como o maior nome da literatura nacional. Escreveu em praticamente todos os gêneros literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista, e crítico literário. Testemunhou a mudança política no país quando a República substituiu o Império e foi um grande comentador e relator dos eventos político-sociais de sua época.

Dados da obra:

Inspirado nos personagens bíblicos, Esaú e Jáco, filhos de Rebecca, Machado retoma o Conselheiro Aires, personagem poderoso que contracena com Natividade, mãe dos gêmeos Pedro e Paulo, protagonistas deste romance. Na trama, os iguais são opostos e concorrentes. Discordam na política, na vida, sempre em campos opostos, um contra o outro, chegando mesmo a cortejar a mesma mulher.

Passagens:

Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dois meninos os próprios espíritos de São Pedro e São Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dois apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em si mesmo, e os olhos ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chama da vida. Pai de apóstolos! E que apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que os espíritos de S. Pedro e S. Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla sem saber o que dizia.

Este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mais ao tempo dá Deus habeas-corpus.

Nem sempre os filhos reproduzem os pais. Camões afirmou que de certo pai só se podia esperar tal filho, e a Ciência confirma esta regra poética. Pela minha parte creio na Ciência como na Poesia, mas há exceções, amigo. Sucede, às vezes, que a natureza faz outra cousa, e nem por isso as plantas deixam de crescer e as estrelas de luzir. O que se deve crer sem erro é que Deus é Deus; e, se alguma rapariga árabe me estiver lendo, ponha-lhe Alá. Todas as línguas vão dar no céu.

O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio.

Nenhuma dessas cousas preocupava Natividade. Mas depressa cuidaria do baile da Ilha Fiscal que se realizou em novembro para honrar os oficiais chilenos. Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer aos olhos. Esta opinião é um dos efeitos daquele mau costume de envelhecer. Não pegues tal costume, leitora. Há outros também ruins, nenhum pior, este é o péssimo. Deixa lá dizerem filósofos que a velhice é um estado útil pela experiência e outras vantagens. Não envelheças amiga minha, por mais que os anjos te convidem a deixar a primavera; quando muito, aceita o estio. O estio é bom, cálido, as noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu aparece logo azul. Assim dançarás sempre.

Ora, o conselheiro tinha visto no rosto da moça a expressão de alguma coisa e insistia por ela. Flora disse como pôde a inveja que lhe metia a vista d princesa, não para brilhar um dia, mas para fugir ao brilho e ao mando, sempre que quisesse ficar súdita de si mesma. Foi então que ele lhe murmurou, como acima.
– Toda alma livre é imperatriz.

Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil. Muita vez indispensável, alguma vez delicioso.

Flora não era avessa à piedade, nem à esperança, como sabeis; mas não ia com a agitação dos pais, e meteu-se com o seu piano e as suas músicas. Escolhei não sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o presente. A música tinha para ela a vantagem de não ser presente, passado ou futuro; era uma cousa fora do tempo e do espaço, uma idealidade pura.

Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caía do céu. Cândido e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que é o nome daquele índio que o Basílio da Gama contou no Uruguai. Voltaire pegou dele para o meter no seu livro e a ironia do filósofo venceu a doçura do poeta. Pobre José Basílio! Tinhas contra ti o assunto estreito e a língua escusa. O grande homem não te arrebatou Lindóia, felizmente, mas Cacambo é dele, mais dele que teu, patrício da minha alma.

Não há novidades nos enterros. Aquele teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio. Bem pensado, a morte, não é outra cousa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora, mas que crime teria cometido aquela moça, além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este óbito sem pena, e ainda trago o enterro à vista... 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Em nome da mãe

Luca, Erri de. Em nome da mãe. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2007; 89 páginas.

Breve relato do autor:

Erri de Lucca é um escritor italiano. Foi dirigente do grupo de extrema esquerda Lotta Continua, caminhoneiro e pedreiro. Durante a guerra na ex-Iugoslávia, dirigiu comboios humanitários destinados à população da Bósnia. Publicou seu primeiro livro Non ora, non qui aos 39 anos e colabora em diversos jornais. É autor de, entre outras obras, Aceto, arcobaleno (Prêmio France Culture, 1994), Três cavalos (Berlendis & Vertecchia Editores, 2006) e Montedidio (Prêmio Femina Étranger, 2002).

Dados da obra:

Em Nome da Mãe trata da vida, esse mistério que é a vida, por meio da Maternidade. Com a palavra Maria – Miriam, na versão hebraica –, a mãe do Menino Jesus – Ieshu –, que vai contar os nove meses entre a Anunciação, na aldeia de Nazaré, à Natividade, em Belém. O autor, estudioso dos textos bíblicos, por meio de seu conhecimento, mas principalmente da sua sensibilidade, se propõe a desvendar esse mistério, mas sem compromisso com conceitos teológicos e filosóficos.

Passagens:

“Em nome do pai” inaugura o sinal-da-cruz. Em nome da mãe inaugura-se a vida.

Os homens dão tanta importância às palavras, para eles são tudo o que conta, que tem valor. Iosef queria conhecê-las para poder guardá-las, relatá-las. Logo imaginou as consequências legais. O anuncio quebrara nosso compromisso. Eu estava grávida de um anjo que chegara, antes do compromisso. Eu estava grávida de um anjo que chegara, antes do casamento. Por isso ele pedia outras palavras, para citar na assembleia, em busca de uma defesa perante a aldeia.

Enquanto isso acontecia, eu olhava para baixo, para a veste, até os pés. Debaixo dela, meu corpo fechado estava calmo como um campo de neve. Enquanto ele falava, eu me tornava mãe. Para perdurar, os homens precisam de palavras, as do anjo para mim eram vento sem importância. Ele portava palavras e sementes, para mim bastava uma.

... Tamar infringiu a lei para poder aplicá-la, porque tinha direito de ser mãe em Israel. Belo nome, Tamar, palmeira que quer dar frutos.

Senhor, Adonai, a tua frase dirigida à nossa mãe Eva: “Com dor darás à luz filhos” não me amedronta. É correta a hora dos empurrões para fora, do esforço. Será preciso bastante esforço para arrancar o menino de mim. Estamos muito bem, nós dois, num só corpo. Bendito o esforço que nos impõe.

Ele conhece meus pensamentos. É um varão e me recrimina. Ocupa todo o meu espaço, não só o do ventre. Está nos meus pensamentos, na minha respiração, cheira o mundo através do meu nariz. Está em todas as fibras do meu corpo. Quando sair, vai me esvaziar, vai me deixar vazia como uma casca de noz. Gostaria que nunca nascesse. Recebo outro chute, porém mais delicado.

“... Com é, Miriam, conter um filho, uma trouxinha de filho, dentro do corpo?”
“Perguntas à panela como se sente? Sou só um receptáculo, gostaria de saber como ele se sente dentro de mim.”
“Um receptáculo? Como podes falar dessa maneira?”

“Sem conhecer nenhum homem, que mulher sou eu? Sou seu receptáculo.”