Saramago, José. Ensaio sobre a Lucidez Companhia das Letras. São Paulo / SP; 2004; 325
páginas.
Breve relato do autor:
José Saramago foi um
escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta, jornalista, dramaturgo, contista,
romancista e poeta português. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e o
Prêmio Camões.
Dados da obra:
O livro retoma
personagens de “Ensaio sobre a cegueira”, como uma continuação deste. Numa
manhã de votação que parecia como todas as outras, na capital de um país
imaginário, verifica-se uma opção radical pelo voto em branco. Usando o símbolo
máximo da democracia - o voto -, os eleitores parecem questionar profundamente
o sistema de sucessão governamental em seu país. A trama narra as providências de governo,
polícia e imprensa para entender as razões da "epidemia branca" -
ações estas que levam rapidamente a um devaneio autoritário -, o autor faz uma
alegoria da fragilidade dos rituais democráticos, do sistema político e das
instituições que nos governam.
Passagens:
Os títulos de
abertura atraíam a atenção dos curiosos, eram enormes, garrafais, outros nas
páginas inferiores, de tamanho normal, mas todos pareciam ter nascido da cabeça
de um mesmo gênio da síntese titulativa, aquela que permite dispensar sem
remorso a leitura da notícia que vem a seguir. Havia-os sentimentais como A
Capital Amanheceu Órfã, irônicos como A Castanha Rebentou Na Boca Dos
Provocadores ou O Voto Branco Saiu-Lhes Preto, pedagógicos como O Estado Dá Uma
Lição À Capital Insurrecta, vingativos como Chegou A Hora do Ajuste De Contas,
proféticos como Tudo Será Diferente A Partir De Agora ou A Partir De Agora Nada
Será Igual, alarmistas como A Anarquia À Espreita ou Movimentações Suspeitas Na
Fronteira, retóricos como Um Discurso Histórico Para Um Momento Histórico,
bajuladores como A Dignidade Do Presidente Desafia A Cidade, objectivos como A
Retirada Dos órgãos De Poder Fez-Se Sem Incidentes, radicais como A Câmara
Municipal Deve Assumir Toda A Autoridade, tácticos como A Solução Está Na
Tradição Municipalista. Referências à estrela maravilhosa, a dos vinte e sete
braços de luz, foram poucas e mesmo essas metidas a trouxe-mouxe no meio das
notícias, sem a graça atractiva de um título, ainda que fosse irônico, ainda
que fosse sarcástico, do gênero E Ainda Se Queixam De Que A Electricidade Está
Cara.
O editorial foi
lido, a rádio repetiu as passagens principais, a televisão entrevistou o
director, e nisto se estava quando, meio-dia exacto era, de todas as casas da
cidade saíram mulheres armadas de vassouras, baldes e pás, e, sem uma palavra,
começaram a varrer as testadas dos prédios em que viviam, desde a porta até o
meio da rua, onde se encontravam com outras mulheres que, do outro lado, para o
mesmo fim e com as mesmas armas, haviam descido. Afiram os dicionários que a
testada é a parte de uma rua ou estrada que fica à frente de um prédio, e nada
há de mais certo, mas também dizem, dizem-no pelo menos alguns, que varrer a
sua testada significa afastar de si alguma responsabilidade ou culpa. Grande
engano o vosso, senhores filólogos e lexicólogos distraídos, varrer a sua
testada começou ser precisamente o que estão a fazer agora estas mulheres da
capital, como no passado também o haviam feito, nas aldeias, as suas mães e
avós, e não o faziam elas, como o não fazem estas, para afastar de si uma
responsabilidade, mas para assumi-la. Possivelmente foi pela mesma razão que ao
terceiro dia saíram à rua os trabalhadores de limpeza. Não traziam uniformes,
vestiam à civil. Disseram que os uniformes é que estavam em greve, não eles.
É interessante como
levamos todos os dias da vida a despedir-nos, dizendo e ouvindo dizer até
amanhã, e, fatalmente, em um desses dias, o que foi último para alguém, ou já
não está aquele a quem o dissemos, ou já não estamos nós que o tínhamos dito.
Veremos se neste amanhã de hoje, a que também costumamos chamar o dia seguinte,
encontrando-se uma vez mais o presidente da câmara e o seu motorista
particular, serão eles capazes de compreender até que ponto é extraordinário,
até que ponto foi quase um milagre terem dito até amanhã e verem que se cumpriu
com certeza o que não havia sido mais que uma problemática possibilidade.
Brancoso fui,
brancoso não serei, que me perdoe a pátria, que me perdoe o rei.
... Tem de haver uma
cabeça, isto não são movimentos que se organizem por si mesmos, a geração
espontânea não existe, e muito menos em acções de massa com esta envergadura,
Não tinha sucedido até hoje, Quer então dizer que não acredita que tenha sido
espontâneo o movimento do voto em branco, É abusivo pretender inferir uma coisa
da outra, Tenho a impressão de que sabe muito mais deste assunto do que quer
fazer parecer, Sempre chega a hora em que descobrimos que sabíamos muito mais
do que antes julgávamos...
O que o senhor
primeiro-ministro crê, pelos vistos, é algo parecido à ideia de que o que faz
que a morte exista é o nome que tem, que as coisas não têm existência real se
não tivermos um nome para lhes dar, Há inúmeras coisas de que desconheço o
nome, animais, vegetais, instrumentos e aparelhos de todas as formas e tamanhos
e para todas as serventias, Mas sabe que o têm, e isso dá-lhe tranquilidade.
Estamos a afastar-nos do assunto, Sim senhor primeiro-ministro, afastamo-nos do
assunto, eu só disse que há quatro anos estivemos cegos e agora digo que
provavelmente cegos continuamos.
Neste caso,
permita-me que o interrompa, senhor primeiro-ministro, quero que fique claro
que a responsabilidade das mudanças de lugar e de sentido das minhas é
unicamente sua, eu não meti para aí prego nem estopa, Digamos que pões a estopa
e eu contribuí com o prego, e que a estopa e o prego juntos me autorizam a
afirmar que o voto em branco é uma manifestação de cegueira tão destrutivo como
a outra, Ou de lucidez, disse o ministro da justiça, Quê, perguntou o ministro
do interior, que julgou ter ouvido mal, Disse que o voto em branco poderia ser
apreciado como uma manifestação de lucidez por parte de quem o usou.
... E não tem medo
de que o café que lhe vou trazer seja já um passo no caminho da corrupção,
Lembro-me de lhe ter ouvido que isso só acontece ao terceiro café, Não, o que
eu disse é que com o terceiro café fica consumado de vez o processo corruptor, o
primeiro abriu a porta, o segundo segurou-a para que o aspirante à corrupção
entrasse sem tropeçar, o terceiro fechou-a definitivamente, ...
... Olhava-me
simplesmente a direito, de frente, com o seu único olho, como se estivesse a
ver-me por dentro, Ilusão sua, Não senhor comissário, a partir de agora fiquei
a saber que um olho vê melhor que dois porque, não tendo o outro para o ajudar,
terá de fazer o trabalho todo, Talvez seja por isso que se diz que na terra dos
cegos quem tem um olho é rei ...
... Posso fazer uma
pergunta, albatroz, Faça-a que eu responderei, papagaio-do-mar, sempre fui bom
a dar respostas, Que acontecerá se não se encontrarem provas da culpabilidade,
O mesmo que aconteceria se não se encontrassem provas da inocência, Como devo
entendê-lo, albatroz, Que há casos em que a sentença já está escrita antes do
crime...
... Uma quadrilha é
um grupo, Sim, albatroz, mas nem todos os grupos são quadrilhas.
Por que está a fazer
isto por nós, por que nos ajuda, Simplesmente por causa de uma pequena frase
que encontrei num livro, há muitos anos, e de que me tinha esquecido, mas que
me regressou à memória num destes dias, Que frase, Nascemos, e nesse momento é
como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em
que nos perguntemos Quem assinou isto por mim...
Desculpe a rudeza da
pergunta, quem é o senhor, O meu nome está aí a assinar a carta, Sim, bem vejo,
há aqui um nome, mas um nome não é mais que uma palavra, não explica nada sobre
quem é a pessoa.
... É como a vida,
minha filha, começa não se sabe para quê e termina não se sabe porque...