Breve relato do autor:
John
Banville é autor irlandês cuja obra combinam-se dicção exuberante, marcada pelo
lirismo e por jogos de linguagem, com enredos complexos. Seu maior sucesso O mar (2005) lhe rendeu o Man Booker
Prize. Sob o pseudônimo de Benjamin Black, publicou ainda mais sete romances
policiais que compõem uma intrincada teia de adultérios envolvendo o
protagonista.
Dados da obra:
Em O mar, John Banville constrói uma
narrativa emocionante, trabalhando a linguagem como um grande artista. O livro
conta uma história com vários momentos, na qual o narrador, Max Morden, procura
viver o presente e o futuro no passado, na busca por recuperar-se da constante
presença da morte.
Passagens:
Mr. Todd se virou um
pouco na cadeira, remexendo os documentos contidos naquela pasta de papelão
rosa-claro que me fez lembrar das frias manhãs de volta às aulas, depois das
férias de verão, da sensação dos livros novos e do cheiro de certo modo repleto
de presságios da tinta e dos lápis recém-apartados. Incrível como a mente
vagueia, mesmo nas situações mais intensas...
Acabei de perceber
que dia é hoje. Está fazendo exatamente um ano daquela visita que Anna e eu
fomos obrigados a fazer a Mr. Todd em seu consultório. Que coincidência... Ou
talvez não. Existem coincidências no reino de Plutão, por cujos ermos vaguei
perdido, como um Orfeu sem lira? E já se passaram doze meses! Devia ter escrito
um diário. O meu diário de um ano catastrófico.
Cismei que ia entrar
naquela casa, andar por onde Mrs. Grace andava, sentar onde ela sentava, tocar
nos objetos em que ela tocava. Para conseguir o meu intento, decidi me
aproximar de Chloe e de seu irmão. Isso era fácil, como são essas coisas na
infância, mesmo para uma criança retraída como eu. Nessa idade não precisamos
puxar conversa nem lançar mão de qualquer ritual para uma aproximação ou um
encontro educados; basta ficar por perto e esperar para ver o que acontece...
... Portanto, o que antevia em termos de futuro era, na verdade, se é que a verdade tem alguma coisa a ver com isso, uma representação daquilo que só podia ser um passado imaginado. Pode-se dizer que eu não estava exatamente antecipando um futuro, mas, antes, assumindo uma atitude nostálgica com relação a ele, um vez que, nos meus sonhos, o que estava por vir era aquilo que já tinha passado. E, de repente, isso vem mostrar, agora, como alguma coisa de certa forma significativa. Será que era mesmo pelo futuro que eu estava ansiando, ou seria algo que estivesse além dele?
Eu me lembro de
Anna; a nossa filha, inimagináveis gerações. Eu me lembro de Anna; a nossa
filha, Claire, vai se lembrar de Anna e de mim; depois, Claire vai embora e
haverá aqueles que vão se lembrar dela, mas não de nós, e esta será a nossa
dissolução final. Alguma coisa de nós vai permanecer, sem dúvida: uma
fotografia desbotada, uma mecha de cabelo, algumas impressões digitais, uma
garoa de átomos no ar do quarto onde demos o último suspiro. Mesmo assim, nada
disso será nós, nada disso será aquilo que somos e que fomos, mas apenas a
poeira dos mortos.
Em outras épocas,
bem que gostava do que via no espelho, mas isso não acontece mais. Agora, fico
espantado, mais do que espantado, diante do rosto que surge ali, de forma tão
abrupta, e que nunca é o que estava esperando encontrar. Fui substituído por
uma paródia de mim mesmo, uma figura lamentavelmente desgrenhada, usando uma máscara
de halloween feita de borracha
flácida e de um cinza meio rosado, que tem apenas uma ligeira semelhança com a
lembrança do que eu era antes e que, só de teimoso, insisto em conservar na
memória.
... A escada era mais
íngreme, o patamar mais acanhado, a janela do banheiro não dava para a rua,
como eu pensava, mas sim para os fundos, para o lado do Campo. Tive uma
sensação quase de pânico quando o real, esse real indelicadamente complacente,
se apoderou das coisas de que eu pensava me lembrar e deu a elas o formato que
bem quis. Algo precioso estava se desmanchando e escorria por entre os meus
dedos. E, no entanto, com que facilidade deixei que aquilo tudo se fosse... O
passado, quero dizer, o passado de verdade, tem muito menos importância do que
acreditamos...