terça-feira, 28 de setembro de 2010

Joe Gould

Mitchell, Joseph. O Segredo de Joe Gould. Companhia das Letras; São Paulo /SP; 2003; 160 páginas.

Dados da obra:

A reportagem 'O segredo de Joe Gould', de 1964, conta a história de um homem que vivia como um mendigo – perambulando pelo Greenwich Village bairro boêmio de Nova York – e planejava publicar um livro monumental: 'História oral do nosso tempo'. É um exemplo de Jornalismo Literário.

Breve relato do autor:

Colaborador da revista 'The New Yorker', Mitchell foi um dos maiores jornalistas norte-americanos do século XX. Ficou conhecido por seus retratos cuidadosamente escritos de excêntricos e pessoas à margem da sociedade.

Passagens:

“Gould sofre de memória perfeita e de vez em quando resolve anotar em minúcias tudo que fez de relativa importância num determinado período do passado recente, que pode ser um dia, uma semana ou um mês. Às vezes escreve um capítulo em que monotonamente amaldiçoa alguém ou uma instituição. Volta e meia divaga sobre temas como a pulga de albergue, o espaguete, o zíper como sinal da decadência da civilização, a dentadura postiça, a insanidade, o sistema de júri, o remorso, a comida de lanchonete e o efeito castrador da máquina de escrever sobre a literatura. ‘William Shakespeare não ficava martelando um maldito troço nojento de 95 dólares, e Joe Gould também não fica’, escreveu.”

“Até hoje não li mais nada de Joe Gould, escreveu (Saroyan) entre outras coisas. No entanto, ele continua sendo para mim um dos poucos autores americanos autênticos e originais. Ele era fácil e despojado, e quase tudo o que se escrevia no país era difícil e empolado. Nada tinha a ver com nada; tudo era burilado demais; tudo era miserável; tudo era meio doentio; tudo era literário; e não se conseguia dizer nada com simplicidade. Toda a literatura americana tentava se encaixar numa forma ou noutra, e nenhum escritor, exceto Joe Gould, demonstrava imaginação suficiente para compreender que, quando o ruim chegou ao pior, não havia mais necessidade de forma nenhuma. Não era preciso colocar o que se tinha a dizer num poema, num ensaio, num conto, numa novela. Bastava dizer.”

“Certa manhã do verão de 1917, depois de trabalhar como repórter por um ano, estava tomando sol (e tentando superar uma ressaca) nos fundos da chefatura de polícia, quando lhe ocorreu a ideia da História Oral. Imediatamente abandonou o emprego e começou a escrever. Num momento de exaltação declarou: ‘Desde essa manhã fatídica, a História Oral tem sido minha corda e minha forca, minha cama e minha comida, minha esposa e minha puta, minha ferida e o sal em cima dela, meu uísque e minha aspirina, minha rocha e minha salvação. É a única coisa que tem algum valor para mim. O resto é lixo’.”

“... até chegar a Nova York sempre se sentiu deslocado. ‘Em minha cidade natal, nunca me senti à vontade’, escreveu certa vez. ‘Eu destoava. Nem em minha própria casa eu me sentia em casa. Em Nova York, principalmente no Greenwich Village, entre os maníacos, os desajustados, os que têm só um pulmão, os que já foram alguma coisa na vida, os que poderiam ter sido, os que gostariam de ser, os que nunca serão e os que só Deus sabe, sempre me senti à vontade’.”

”Fomos para a mesa e a garçonete trouxe o café de Gould. Servido nunca caneca branca e grossa, estilo taberna, o café estava tão quente que fumegava. Mesmo assim, Gould inclinou a caneca ligeiramente em sua direção, sem levantá-la da mesa, debruçou-se e se pôs a tomar o café em pequenos goles cautelosos e rápidos, como um passarinho, entremeando-os de gemidos que indicavam prazer ou alívio, e quase de imediato seu rosto recuperou a cor, seus olhos se tornaram mais brilhantes e o movimento involuntário da boca desapareceu. Eu nunca tinha visto um café provocar em alguém uma reação tão instantânea e visível; provavelmente um conhaque não teria feito mais por ele, nem um dose de cocaína, nem uma tenda de oxigênio, nem uma transfusão de sangue. Gould tomou a caneca inteira dessa forma e depois se aprumou, pendeu a cabeça para um lado e olhou para mim.”

“...No trem, a caminho de Nova York, senti tanta saudade de Norwood que precisei me controlar para não descer e voltar atrás. Mesmo hoje ainda sofro, às vezes, com saudade de Norwood. Um cheiro azedo, como o de um porão onde um velho italiano esteja fabricando vinho, lá no setor italiano do Village, me lembra os curtumes e desperta a saudade. Essa é uma das piores coisas que descobri sobre as emoções humanas e como elas podem ser muito traiçoeiras – o fato de que é possível odiar um lugar de todo o coração e com toda a alma e ainda sentir saudade. Sem falar que é possível odiar uma pessoa de todo o coração e com toda a alma e ainda suspirar por ela.”

“...Eu considero o mais são dos homens aquele que melhor compreende o trágico isolamento da humanidade e prossegue calmamente na busca de seus propósitos essenciais”, escreveu. “Acho que penso dessa forma porque sofro de delírio de grandeza. Acho que sou Joe Gould.”

“... “O pessoal do Minetta me trata bem agora, mas pode se cansar de mim a qualquer momento e me enxotar, e, se fizer isso, eu não vou gostar de ir lá perguntar se chegou carta para mim.” E então disse uma coisa que me deixou sem palavras: ‘Escute aqui, foi você que começou tudo isto. Eu não procurei você. Você é que me procurou. Você queria escrever um artigo sobre mim e escreveu e agora tem de arcar com as consequências’.”

“Eu estava furioso. Assim que Pearce saiu, voltei-me para Gould. ‘Você me disse que levou braçadas da História Oral a catorze editoras’, falei. ‘Por que diabos teve todo esse trabalho se havia decidido no fundo de você mesmo que a História Oral seria uma obra póstuma? Estou começando a crer que a História Oral não existe’. Essa frase saiu de meu inconsciente, e eu não tinha muita noção do que estava dizendo – só estava desabafando minha raiva –, mas no momento seguinte, ao olhar para Gould, tive certeza de que havia descoberto a verdade sobre a História Oral.
‘Meu Deus!’, exclamei. ‘Ela não existe’. Eu estava estarrecido. ‘A História Oral não existe. Não existe’
Encarei Gould, e ele me encarou. Seu rosto não tinha expressão nenhuma.”

“Voltei para minha sala, sentei-me e apoiei os cotovelos na escrivaninha e a cabeça nas mãos. Sempre tive horror de ver alguém desmascarado, flagrado numa mentira ou pego com a boca na botija, e agora, com tempo para refletir, senti vergonha de mim mesmo por ter perdido a calma e me enfurecido com Gould. A raiva começou a se dissipar, e eu fui ficando deprimido. Gould me enganara – não havia muita dúvida em relação a isso –, assim como enganara inúmeras pessoas ao longo dos anos. Havia me engabelado, assim como havia engabelado inúmeras pessoas. No entanto não precisei refletir muito sobre o assunto para chegar à conclusão de que ele não andara discorrendo sobre a História Oral todos aqueles anos e fazendo grandes declarações sobre sua extensão, seu volume, sua importância para a posteridade e comparando-a com obras como A história do declínio e queda do Império Romano só para enganar gente como eu, mas também para enganar a si próprio. Com certeza descobrira, muito tempo atrás, que não tinha o gênio, o talento ou, talvez, a segurança, o empenho, a determinação para produzir uma obra tão imensa e grandiosa como imaginara e se contentara com escrever os tais capítulos de ensaios. Escrever e reescrever. E, ou por ser preguiçoso demais, ou por ser perfeccionista demais, nem esses capítulos conseguira terminar. Contudo, em boa parte do tempo provavelmente acreditava, de modo nebuloso, iludindo-se e protegendo a si mesmo, que a História Oral de fato existia – os capítulos orais e os capítulos de ensaios. A parte oral podia não estar no papel, mas ele a tinha inteira na cabeça e um dia qualquer começaria a escrevê-la.”

“Passei mais de um ano pensando nesse romance. Sempre que tinha uma folga, punha-me a escrevê-lo mentalmente. Ás vezes, numa viagem de metrô, escrevia três ou quatro capítulos. Quase todo dia descartava e criava personagens. Mas a verdade é que nunca escrevi de fato uma só palavra. O tempo passou, outros assuntos me ocuparam. E, mesmo assim, durante alguns anos eu frequentemente devaneava, e nesses devaneios terminava de escrever meu romance e o via publicado. Via o frontispício. Via a capa – verde com letras douradas. Essas lembranças me causaram um constrangimento quase insuportável, e passei a me sentir cada vez mais solidário com Gould.”

“Desde sua criação, em 1925, a New Yorker cultivava manias que desafiavam todo bom senso editorial. Por exemplo: tanto na gestão de Haroldo Ross, seu fundador e editor até 1951, como na de William Shawn, à frente da publicação de 1951 a 1987, a New Yorker manteve o princípio de jamais pautar seus escritores. Num livro-homenagem a Shawn, Remembering mr. Shawn´s “New Yorker”, o escritor Ved Mehta cita o próprio Shawn a esse respeito: `Somos uma revista de escritores e de artistas gráficos, e é fundamental que nossos colaboradores possam escrever e desenhar o que bem entenderem. Um dos problemas com a encomenda de matérias é que elas transformam colaboradores em empregados.”

“...Como escreveu o poeta e ensaísta Joseph Brodsky, outro colaborador da revista, entre os anjos não existe hierarquia. A partir de certo grau de excelência é bobagem comparar escritores para determinar quem é superior a quem. O melhor elogio que se pode fazer a Mitchell é dizer que até hoje ele representa o paradigma da grande tradição do jornalismo literário americano. É o exemplo a ser seguido. Mitchell é o escritor dos escritores. Quem entende do riscado gostaria de ser igual.”

“... A revista de Haroldo Ross e William Shawn criara as condições institucionais para o tipo de jornalismo praticado por ele. Só ela combinava quatro predicados essenciais: tempo (para apurar e escrever), espaço (quando a matéria era grande demais, o editor simplesmente dividia o artigo em duas ou mais partes), apoio financeiro e liberdade editorial. Mitchell podia levar dois anos escrevendo a matéria que bem quisesse. O salário pingava todo mês.”

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